Pelo Mundo em Zurique

Por Andréa Menescal
Coluna Pelo Mundo

switzerland_640De uma organização nasce a outra, de uma atividade surgem outras, de uma cooperação desenvolvem-se outras… e por aí já se passaram quase 19 anos nos quais um intenso trabalho em favor do ensino e da expansão do Português como Língua de Herança se consolida.

Nesta entrevista vamos conhecer a Associação Brasileira de Educação e Cultura (ABEC), com sede em Zurique, Suiça. E quem nos conta a história desta iniciativa é a paulista Miriam Vizentini Müller, que vive na região de Baden, cantão Argóvia. Formada em Psicologia pela PUC-SP, com Licenciatura em Educação, Miriam é coordenadora pedagógica da ABEC há 18 anos.

Plataforma Brasileirinhos – Antes de falar da criação da ABEC, conte-nos um pouco sobre você, Miriam. Como você veio parar na Suíça?
Miriam Vizentini Müller Eu vim para a Suíça com a minha família em 1990, quando meu marido aceitou um convite para trabalhar aqui por dois anos. Foi a época do plano Collor… que levou nossas poucas e “jovens” economias. Depois o contrato foi sendo renovado e acabamos ficando por aqui até hoje. Nossos filhos eram pequenos quando viemos. Eles cresceram e estudaram aqui e, com isso, acabamos “perdendo” a hora de voltar.

PB – Já existiam muitos brasileiros na sua região?
MVM – Não. Na época em que chegamos, não havia tantos brasileiros quanto atualmente. Ainda não existiam associações que trabalhassem com a comunidade brasileira, como hoje, cada vez mais numerosa. Mas a necessidade de ter com quem trocar experiências, sim.

PB – E assim você foi atrás e conseguiu achar brasileiros?
MVM – Isso mesmo. No início dos anos 90 conheci brasileiros interessados em trabalhar com nossa cultura, um trabalho que divulgasse mais do que apenas “samba-carnaval-futebol-meninos-de-rua-cheirando-cola” (expressão que ouvi de um guarda de fronteira suíço!). Essa era nossa “imagem” de então. Assim, participamos “de longe” da Campanha do Betinho contra a Fome (www.acaodacidadania.com.br/?page=cronologia), que acontecia em todo o Brasil. Organizamos shows com músicos que aqui viviam para arrecadar fundos e esses eram enviados ao Brasil. Durante esses shows montávamos estandes com informações sobre o Brasil.

PB –Com que organizações você trabalhava naquela época?
MVM – Trabalhei para a associação suíça Terre des Hommes com um grupo de brasileiras voluntárias de Baden nos mesmos moldes de barraquinhas com informações sobre o Brasil nas festas beneficentes. Na mesma época havia um grupo na Alemanha formado por brasileiros e “amigos do Brasil”, o KoBra – Kooperation Brasilien e.V. (www.kooperation-brasilien.org/pt-br), que se estendeu para a Suíça. Nele eram discutidas as situações de imigração, as necessidades e os anseios. E essa vontade de ter voz entre os estrangeiros e ter o direito de ensinarmos nosso idioma às nossas crianças, especialmente no espaço da escola pública, foi crescendo cada vez mais ao ponto de criarmos associações de pais e professores para viabilizar esse ensino. Sabíamos que embaixadas com as Itália, da Espanha e de Portugal davam apoio a esse ensino da língua e por isso, mesmo independente da falta de interesse do nosso corpo diplomático, os grupos de brasileiros foram surgindo em Berna, Zurique e na parte francesa também.

PB – Foi a partir daí que surgiu a ABEC?
MVM – Não. A ABEC nasceu dentro de uma outra organização: o Centro Brasileiro de Ação Cultural – CEBRAC.

PB– Ah, gostamos muito de histórias de como tudo começou! Conte-nos a do CEBRAC e da ABEC!
MVM – Em 1996, num Café da estação central de Zurique, lá estávamos nós… cinco professoras de cantões diferentes com o mesmo objetivo: viabilizar o trabalho de levar a cultura brasileira às crianças de famílias brasileiras ou mistas nos diversos cantões. Tínhamos algo mais em comum: a boa vontade para o trabalho voluntário e a imensa vontade de apresentar a nossa visão de Brasil, rico e diversificado. Foi exatamente ali que nasceu o Centro Brasileiro de Ação Cultural (CEBRAC). O CEBRAC cresceu muito e, em 2002, nasceu dele a ABEC – Associação Brasileira de Educação e Cultura, que ficou sendo a gestora dos cursos de língua e cultura para as crianças de origem brasileira.

PB – E o que faz atualmente cada uma dessas organizações?
MVM – O CEBRAC hoje é uma associação de referência na cidade de Zurique para integração, promove eventos culturais , tem uma ótima biblioteca em língua portuguesa, ministra cursos de português e alemão para adultos e faz atendimento de imigrantes em língua portuguesa. A ABEC é a responsável pelos cursos de Língua e Cultura do Brasil, nos cantões Zurique, Argóvia, Berna, Thurgóvia, Solothurn, St Gallen, Zug e Luzerna. E eu sou a coordenadora pedagógica desses cursos desde o início.

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PB –Mas sabemos que você faz muitas outras coisas, não é?
MVM – Isso é verdade. Também dou aulas nos cantões Zurique e Argóvia e represento o Brasil na Comissão Pedagógica Intercultural, da Secretaria de Educação do Cantão Zurique, que eu diria ser o nosso grande parceiro. Trabalho na orientação dos professores, no desenvolvimento do conceito do curso, de material, ministrando oficinas de formação. Atuo, ainda, como palestrante em oficinas ligadas à educação para a comunidade brasileira e para suíços e trabalho com a integração de crianças de língua portuguesa na escola Aemtler, em Zurique.

PB– Dentro da ABEC, quem são as outras pessoas envolvidas nos trabalhos da equipe pedagógica?
MVM – A professora Sandra da Silva faz a coordenação da Educação Infantil e a professora Arlete Baumann é a coordenadora geral do cursos. Esta organização e divisão de trabalho tem sido boa mas o volume de trabalho tem aumentado muito, para um trabalho voluntário. Seria muito bom se conseguíssemos patrocínio pois, por enquanto, temos apenas os fundos vindos de pequenas doações, festas e da semestralidade paga pelos pais.

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PB–Quantas crianças estão envolvidas no trabalho da ABEC e qual é a faixa etária?
MVM– Atualmente temos em torno de 150 crianças e jovens, distribuídos em 28 turmas e provenientes de famílias que tenham uma origem brasileira. Para uma classe existir, quer dizer, para ser viável o financiamento, é necessário um mínimo de 7 alunos. Temos classes de Educação Infantil e de Educação fundamental, ou seja, temos alunos dos 4 – 5 anos até os 15 anos. Algumas classes são bastante heterogêneas quanto à faixa etária. A maioria de nossos alunos são suíço-brasileiros, mas temos também alunos franco-brasileiros, ítalo-croata-brasileiros e outras combinações além de filhos de brasileiros expatriados a trabalho.

PB – Como é estruturada a cooperação da ABEC com a prefeitura de Zurique e/ou os cantões? Explique-nos um pouco como é esse ensino de português dentro do contexto suíço.
MVM – Os cursos de Língua e Cultura, conhecidos como “HSK – Heimatlicher Sprache und Kultur”, são uma tradição na Suíça desde os anos 40, quando, no pós-guerra, as famílias italianas que para cá imigraram preparavam suas crianças para um possível retorno ao país de origem. Isso ocorreu apenas em parte mas os cursos continuaram e foram se expandindo a outras línguas e suas embaixadas. A Suíça deixa claro que o financiamento dos cursos é de competência dos países gestores, mas o controle de qualidade dos cursos é feito pelas secretarias de educação cantonais. As cidades e vilarejos disponibilizam salas de aulas, sem ônus, nos horários em que estão livres. Algumas escolas ainda ajudam com material como papel, cópias, cadernos, etc. Isso significa que não temos gastos, por exemplo, com luz e aluguel de espaço, o que permite que os pais desembolsem bem pouco, a cada semestre, como ajuda de custo para remunerar os professores. Como organização não governamental, sem fins lucrativos, o preço dos cursos deve ser baixo.

PB – E os professores, o que recebem em termos de cursos?
MVM– Os cantões de Zurique, Berna e Argóvia proporcionam oficinas anuais para aperfeiçoamento e atualização aos professores de língua e cultura. A Comissão Pedagógica Intercultural de Zurique propicia uma troca entre os países gestores dos cursos, em geral com representantes das embaixadas. Nela discutimos os problemas comuns, desenvolvemos trabalhos que podem ser aproveitados por todos os grupos linguísticos, como materiais e o quadro de referência curricular para os cursos de língua e cultura (“Rahmenlehrplan–ZH”). Apesar do ensino ser de competência de cada cantão, Zurique tem influenciado os demais cantões suíços em relação ao que foi desenvolvido para os nossos cursos.

PB –Como foi elaborado o conteúdo do ensino de Língua e Cultura do Brasil?
MVM– Eu mesma desenvolvi o currículo de nossos cursos baseada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do Brasil e no “Rahmenlehrplan Zürich – RLP-ZH” do Cantão de Zurique. Este último é um plano geral com suas especificidades. Cada professor desenvolve seu plano semestral a partir dessas linhas diretrizes. Trabalhamos com projetos que têm duração semestral ou anual. Temos procurado desenvolver o nosso próprio material. Estamos produzindo algumas apostilas temáticas, quero dizer, com textos de diferentes níveis de dificuldade para determinados temas e ideias para projetos.

PB –Existem bibliotecas com acervo em português? Vocês possuem um trabalho de leitura dentro da ABEC e suas atividades?
MVM – Sim, existem várias bibliotecas com acervo “multicultural”, especialmente em Zurique e Winterthur. Eu diria que o trabalho com a leitura e a produção de textos é o ponto forte de nossos cursos. Tivemos a oportunidade de ter por aqui alguns autores brasileiros de literatura infanto-juvenis que chegaram a desenvolver um trabalho com nossas crianças. E, atualmente, temos na biblioteca de Baden o projeto “Conta-me uma história”, em português, e um outro trabalho de “contação de histórias” desenvolvido por uma ex-professora nossa, que vai de cidade em cidade conforme o convite. Essas últimas não são atividades específicas da ABEC mas nós recomendamos ou colocamos em nosso planejamento como atividade extra.

PB – Vocês acabaram de lançar um livro bilíngue com textos escritos pelos alunos. Você pode nos dar mais detalhes de como surgiu a ideia desse livro?
MVM– O projeto do livro “Pipoca, brigadeiro e guaraná” nasceu para ser uma coletânea dos melhores textos produzidos em sala de aula por nossos alunos. Era uma forma de valorizar e incentivar este trabalho, já que as atividades escritas não são as mais amadas e nem sempre são recebidas com prazer. Eu, particularmente, amo escrever. E acho que por isso levo meus alunos a encarar melhor essa atividade. Já “produzi” diversos livrinhos, revistas e jornaizinhos , artesanalmente, com meus alunos. Como muitos dos alunos diziam que “eram melhores em alemão”, veio a ideia de valorizar sua condição bilingue, para que eles tivessem a consciência de que estão desenvolvendo competências para ler e escrever nos dois idomas, alemão e português. Daí veio a ideia do livro ser bilíngue. O trabalho envolveu todas as turmas da ABEC que se dispuseram a participar.

PB – Como foi a produção em si do “Pipoca, brigadeiro e guaraná”?
MVM – Foi um trabalho imenso! Além do trabalho da escrita das histórias com os alunos em sala de aula (porque não se sai escrevendo e pronto, é preciso preparar a classe, oferecer modelos e de certa forma algumas “fórmulas”, enfim…), da ilustração feita pelos autores, foram horas de leitura e seleção das histórias enviadas – eu diria que foi a parte mais divertida. A parte mais cansativa foi, sem dúvida, a digitação e correção. Os textos foram traduzidos pelos próprios alunos ou pelos pais ou por nosso tesoureiro, que também é nosso expert em computador. Ele participou também, com uma de nossas professoras, na diagramação. A capa foi feita por uma profissional brasileira que tem ilustrado cartões e prospectos da ABEC. A impressão foi entregue a uma gráfica – e foi a única etapa deste imenso trabalho financiada pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) via Consulado-Geral do Brasil em Zurique. O restante foi voluntário… mas ficou tão bom que nos encheu de orgulho!

PB –E qual foi a sensação ao ter o livro pronto?
MVM – Ter o livrinho, que ficou lindo, nas mãos foi quase mágico. Muitos alunos querem que a gente faça um segundo porque agora querem participar.

PB–Como é feita pela ABEC a avaliação de desempenho da criança na disciplina de Língua e Cultura do Brasil?
MVM– A avaliação de desempenho é constante e baseia-se nas observações e nos trabalhos desenvolvidos em sala de aula. Nas séries mais adiantadas temos muitas vezes algum tipo de atividade mais formal, que não chega a ser exatamente como a prova tradicional. Existem critérios da escola suíça de atribuição de notas que devem ser seguidos. E o que é especial: as notas de aproveitamento dos nossos alunos são transcritas no boletim oficial suíço, na maioria dos cantões, a partir da segunda série.

PB – Como você avaliaria o trabalho da ABEC desde o começo?
MVM– O trabalho nestes 18 anos mudou, sem dúvida. Amadurecemos muito, estudamos e aprendemos bastante, teoricamente e na prática, errando e acertando – “learning by doing” mesmo! O fato deste tipo de curso não existir no Brasil nos deu a liberdade de criar; deixou-nos perdidos também. Hoje penso que encontramos um caminho, apesar de termos ainda muito a ser trilhado e aperfeiçoado, como tudo na vida! A internet também facilitou nosso trabalho pois, se antes tínhamos que encher nossa bagagem com livros e revistas ao sair do Brasil, hoje temos páginas muito boas na internet para produzirmos um material adequado às nossas necessidades. Também muita gente desacreditava da importância deste trabalho. Ouvi muitas vezes algo como: ”meu filho não precisa do português para nada”. Mas a história mudou, mostrando que o português é uma das línguas que mais cresce em importância no mundo. E muitos jovens hoje me dizem que deveriam ter ido aprender quando eram pequenos!

PB–Que dificuldades vocês enfrentam hoje no ensino de Português como Língua de Herança?
MVM– As duas mais comuns são: a) lidar com a heterogeneidade de muitas das classes, em termos de faixa etária, competência linguística, entre outras diferenças e, b) o volume de trabalho voluntário, que muitas vezes desestimula, gera rotatividade de professoras (elas acabam arranjando um outro emprego) e também nos tolhe em muitas ideias que ficam quase impossíveis de serem realizadas.

PB –Vocês possuem atividades com o envolvimento dos pais?
MVM– Esse envolvimento varia muito de família para família, no interesse e na competência. Mas eu diria que nossa relação com os pais, de uma forma geral, é boa. Alguns participam bem; outros deixam a aprendizagem apenas nas mãos da escola. Nestes casos é mais complicado, especialmente se existem cobranças. É nas festas que os pais participam bastante!

PB– Qual seria o seu recado para os pais brasileiros que moram pelo mundo afora?
MVM– Não deixem de proporcionar a seus filhos a aprendizagem desse nosso idioma tão lindo. É uma chance a não se perder, que essas crianças se tornem competentes e desenvolvam sua condição de bilíngues. Mesmo que exista certa resistência da garotada em determinados momentos, não desistam! Ao final, as crianças, certamente, vão sair ganhando e acabarão por agradecer aos pais pela “batalha”. Gostaria também de lembrar que, mesmo que os pais trabalhem com a linguagem escrita em casa, é no grupo de pares que se criam situações de aprendizagem e de uso da língua e se desenvolve uma competência comunicativa social.

PB – Você esteve em outubro de 2014 como palestrante na Oficina de Formação de PLH em Munique. Como foi essa experiência? Você já participou, com certeza, de outros encontros nessa área. Tem mudado alguma coisa na Europa no ensino de PLH e de coordenação das iniciativas?
MVM– As trocas de experiências, as discussões, os questionamentos e as possíveis soluções de problemas comuns que surgem durante essas oficinas, simpósios e congressos de que tenho participado são muito ricas e o ambiente é delicioso. Desta vez, em Munique, foi especialmente agradável e proveitoso pelo número ideal de participantes, o grande interesse e o alto nível dos trabalhos. Penso que nenhum trabalho isolado vai muito longe. Essas parcerias são necessárias. Na Europa, temos uma realidade diferente da americana, cujos grupos também estão se organizando, e da brasileira – e aqui me refiro ao contexto de imigração e suas consequências nos grupos que lidam com a preservação de nossa língua e cultura. É importante que busquemos o contato com o pessoal que trabalha nos diferentes países europeus para trocas. Em Munique surgiram várias ideias de parceria de trabalhos para, por exemplo, desenvolver materiais didáticos adequados, currículos e outros. Eu, particularmente, acredito num futuro com muitas conquistas para todos nós através do Elo Europeu de Educadores de Português como Língua de Herança.

PB– Que recado você deixaria para outros educadores de PLH?
MVM – Divirtam-se com a alegria e a criatividade de nossa garotada, acreditem que essas crianças e jovens têm capacidades que poderão surpreender e, por fim, deliciem-se com as várias manifestações culturais brasileiras que podem ser trabalhadas em sala de aula.

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