Língua de herança é a língua de quem?

Por Andreia Moroni
Coluna Educação Bilíngue

Tem a tal da língua materna. Nela somos criados, ela é quem cria a gente, desde pequenos. Tem também a tal da língua estrangeira: não é a língua que falamos em primeiro lugar, é realmente uma língua que veio de fora, de outra cultura, de outro país, que começamos a aprender depois de já dominar nossa língua materna.

Se você é brasileiro e cresceu no Brasil, sua língua materna é o português. Línguas estrangeiras são aquelas que você não falava e não existiam no seu entorno, mas que talvez você tenha aprendido depois: inglês, francês, espanhol, alemão e muitas mais. Se você é brasileiro e cresceu no Brasil, provavelmente viveu num ambiente monolíngue, onde só uma língua é falada.

Mas o que acontece quando você, brasileiro ou brasileira, já não mora no Brasil, tem filhos e a língua do país não é o português? Aqui o português também imigrou com você e, se você decidir ensiná-lo a seus filhos, ele muda de nome e recebe novo passaporte: passa a ser língua de herança. Muito prazer.

Língua de herança é o idioma que os pais decidem transmitir aos filhos como parte de seu legado cultural, dos princípios e valores da família. Se você é brasileira e mora nos EUA, seus filhos terão uma grande exposição ao inglês – e provavelmente esta será sua língua materna, mesmo sem ser a língua da mãe. A língua da mãe é o português, agora língua de herança. Com todo o valor mais precioso que o que queremos deixar aos filhos tem.

É diferente de uma língua estrangeira, pois apesar de ser a língua de um país diferente desses Estados Unidos em que a criança mora, está com ela desde o nascimento – claro, se os pais quiserem e decidirem falar em português com o filho. Quem quiser que os filhos aprendam, quanto antes começarem, na barriga ainda, melhor.

Mas por que se preocupar em ensinar português aos filhos se toda a família agora mora em outro país? Porque assim eles vão entender melhor quem os pais são e a cultura verde e amarela em que cresceram. Porque assim podem se comunicar com a família no Brasil. Porque o mundo é grande e saber um idioma a mais nunca é ruim. Mas, principalmente, para que pais e filhos possam se comunicar melhor pela vida afora, pois se os filhos crescem numa língua que os pais não dominam bem e também não falam a língua dos pais, lá na frente vocês não vão se entender e haverá tensão.

Transmitir a língua de herança não costuma ser simples nem fácil. Não se desespere se seus filhos não falam com você em português, mesmo se essa for a única língua que você usa com eles. Se eles entendem a sua língua (têm um “conhecimento passivo” do idioma), já pode ser bom sinal. Muitos fatores influenciam o quanto essa transmissão pode ser bem sucedida – e a gente pode continuar falando disso nas próximas colunas. Mas, para uma língua de herança, uma coisa é fundamental: que os pais a usem com os filhos, se não, não há legado nenhum a transmitir.

Sobre a colunista

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Andreia Moroni, tradutora e editora, é membro-fundador da Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha (APBC), que realiza encontros de lazer e cultura e promove aulas de português para filhos de brasileiros na Espanha. Atualmente faz doutorado em Linguística Aplicada na Unicamp, estudando o português como língua de herança nas comunidades brasileiras do exterior.

12 comentários em “Língua de herança é a língua de quem?

  1. Gostei muito do seu texto, mas tenho duvidas sobre o assunto. 1 – Se língua materna e a língua da pátria onde se nasce? 2 – Se o pai tem uma língua e a mãe outra, qual será a língua de herança do filho, uma vez que se leva em consideração a herança linguístico cultural? 3 – Tenho lido em alguns estudos , que a língua materna e a língua da mãe, nem e a do pai da crianca. Imagina se e da pátria onde se nasce? Como pode ver, tenho muitas coisas para aprender.Obrigada.

    1. Ola, Margarida, eu morei no Japão muito tempo e la houve uma pesquisa sobre o assunto na Universidade Sofia, se nao me engano. A conclusão foi que a criança aprende muito mais facilmente a lingua dos pais (mesmo que os pais nao falem a mesma lingua) e a lingua do pais onde moram se todos forem coerentes e nao misturarem as línguas. Ou seja, a criança tem a capacidade de aprender três línguas ao mesmo tempo sem problemas e sem confusão, desde que a pessoa com quem esteja falando nao misture duas línguas na mesma frase. Nao existe nenhuma contraindicação, portanto de se falar em português e francês em casa e aprender japonês na escola, por exemplo.

      1. desculpe, acho que nao respondi a sua questao, eu li muito rapidamente! 🙂 Seria um comentario mais sobre o texto. Acho que a lingua materna é a lingua do pais onde se nasce, meus pais nasceram no Brasil de pais europeus e para eles e muitos outros brasileiros cujos pais vieram de fora, a lingua materna é o português.

    2. Oi Margarida, tudo bem?

      Bom, neste texto optei por usar o termo “língua materna”. Ele, no entanto, sempre gera confusão, pois tendemos a pensar que é a língua que a mãe fala com a criança. Na verdade, existem algumas definições possíveis quando falamos em língua materna, depende da corrente teórica (para o campo de aquisição de linguagem, por exemplo, seria a língua em que a criança passa da condição de “infant”, ou de não-falante, à de falante, ou seja, outra coisa ainda!).
      Aqui, “língua materna” deve ser pensada como a língua dominante, ou aquela em que a criança tem mais proficiência, e também é chamada de L1.
      Sobre sua pergunta 2, se o pai e a mãe falam línguas diferentes, vêm de culturas diferentes e a família mora num terceiro país, ambas as línguas e culturas serão de herança – é possível ter mais de uma e é possível transmitir ambas as línguas de herança, e mesmo assim a criança aprenderá a língua do país onde mora – na escola, na rua, na vida social.
      Não entendi muito bem a pergunta 3, mas remeto à 1: é uma questão de definição. Acho menos importantes os rótulos se você sabe qual o fenômeno a que está fazendo referência.

      Obrigada pelas leituras e pelos comentários!

      Abraço,

      Andreia

  2. Pensar sobre a construção do pensamento reflexivo e investigativo é importante considerar seja qual for o uso da lingua de HERANÇA no convívio familiar que os pais decidirem transmitir. Esta matéria deixa uma reflexão, muito importante, para entender o princípio básico que a criança precisa desenvolver sobre a construcão do pensamento reflexivo e investigativo para provar uma verdade.

  3. Excelente esclarecimento! Sou brasileira, moro na França e tenho prazer e orgulho de falar português com minha filha! Feliz em partilhar uma herança “em todas as letras”, pois tenho certeza que minha língua é a minha sincera expressão. Sinto-me responsável e muito agradecida em explorar minha “brasilidade” em todos os aspectos e dividir com ela um universo rico, contar coisas da minha infância, saborear a culinária, escutar música e fazer brincadeiras sem precisar tradução!
    Nenhuma desvantagem, só vejo aspectos positivos, muitas conquistas!

  4. Andreia, temos esta vivencia aqui mesmo no Brasil, com os surdos que usam a Libras(língua brasileira de sinais). Você já pensou sobre isso? Se sim, me passe suas percepções, tenho muito interesse em saber a opinião de alguém de fora. Sou pesquisadora nesta área. Um abraço, obrigada.

  5. Pontos muito bons, Andreia, mas o Brasil não é um país monolingue. Não se esqueça das nações indígenas e das comunidades imigrantes.

    1. Obrigada pelo comentário, Yasmin. De fato, a autora ressalta que o Brasil é tido como um país monolíngue porque o senso comum tem essa impressão. Muito boa a sua ressalva. Obrigada! Felicia Jennings-Winterle, Editora da Plataforma Brasileirinhos.

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